Pentesileia: o ícone da tempestade sombria (Q.S. 1.353-356).

 


Traduzir é, com certeza, uma atividade regida pelo deus Hermes.

Hermes é o deus dos caminhos, o deus das trocas, sempre levando algo do ponto A para o ponto B, é o deus que detém a "infalível arma da linguagem", como diz um Hino Órfico, é o deus dos intérpretes -- os hermeneutas -- e tradução é um pouco tudo isso, né? 

Então, ao traduzir, é bom sempre ter o altar bem ornado para esse deus (e também para as Musas, já que a tradução tem que soar bem, afinal, e também para Atena, porque é necessária aquela inteligência chamada Métis, que os gregos gostavam, e nos leva a procurar saídas para os desafios mais impossíveis). 

Mas devo a Hermes a tradução do trecho abaixo, porque o deus Hermes às vezes é também um pouco ladrão, e o tradutor não se furta de furtar boas soluções poéticas dos seus colegas. 

Algumas entram no cânone tradutório de Clássicas, como todos aqueles salamaleques com adjetivos compostos -- multiastucioso Odisseu, o multirresonante mar, etc...mas a imagem que eu quis, , homenagear, aqui vêm da tradução da Ilíada do Haroldo de Campos. Numa imagem belíssima, Homero nos fala da chegada de Apolo, no início do poema, ao campo de batalha troiano. O poeta grego diz que Apolo "chega como a noite", "igual à noite", em traduções, digamos assim, mais prosaicas. 

Não para Haroldo. 

Para Haroldo, o deus furioso é o "ícone da noite". E vejam que bonito: ele resgata algo do étimo da palavra grega, que diz nýkti eoikós. Percebem como ele aproximou som e sentido? 

Na minha tradução, gostei do trecho em que Pentesileia avança destruindo os gregos. Em certo ponto, o poeta a compara à tempestade que acomete o mar durante o solstício do inverno ("quando a força sol se alinha com Capricórnio). Ela é, então, "como/igual à tempestade sombria" (láilapi kyaneí enalínkion). Mas eu gostei, achei bonito, traduzir assim, em homenagem àquela bela tradução de Haroldo de Campos (Pós-Homéricas, 1.353-356)

Um dos troianos exultou, máximo júbilo,

ao ver Pentesileia correndo em meio às tropas,

 ícone da sombria tempestade que em alto mar

desvaira, quando a força do sol entra em Capricórnio

[Καί τις ἐνὶ Τρώεσσιν ἀγάσσατο μακρὰ γεγηθώς,
ὡς ἴδε Πενθεσίλειαν ἀνὰ στρατὸν ἀίσσουσαν
λαίλαπι κυανέῃ ἐναλίγκιον, ἥ τ' ἐνὶ πόντῳ
 μαίνεθ', ὅτ' Αἰγοκερῆι συνέρχεται ἠελίου ἴς·]

A tradução do Haroldo de Campos foi publicada pela Editora Benvirá/Arx, e nesses tempos em que temos traduções da Ilíada para dar e vender, uma nova edição destas não ficaria nada mal, já que ainda hoje excele em qualidade poética. 

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